
(Artigo para a coluna “Biodireito” da revista eletrônica da OAB Varginha. Março 2018).
O BIODIREITO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
Talvez já tenha lido artigos jurídicos onde a expressão “Biodireito” apareceu com frequência. Normalmente associamos Biodireito com projetos de genoma, reprodução humana assistida, organismos geneticamente modificados, aborto etc. É certo que todos esses aspectos são disciplinados pelo Biodireito. Mas, o que é Biodireito e como este aspecto do direito frequentemente influencia a vida das pessoas?
De forma bem resumida, Biodireito é a área do direito que estuda e disciplina as relações jurídicas existentes quando temos de um lado o avanço da medicina e da biotecnologia, e do outro lado o indivíduo, seja ele adulto ou ainda um embrião.
O Biodireito, intimamente associado à Bioética, se fundamenta principalmente em Princípios Fundamentais e Direitos assegurados pela Constituição da República, como por exemplo, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o Direito à Vida e o Direito à Autonomia de Vontade. Em quase todos os casos, a decisão tomada envolverá o equilíbrio ou a somatória desses princípios e direitos pelos envolvidos, quer seja o paciente, os familiares ou a equipe médica.
Dessa forma, não há possibilidade de abrangência desse tema em apenas um artigo. Carece de mais estudos, discussões e abordagens que serão feitas neste mesmo espaço.
A título de exemplo, falaremos brevemente sobre o Princípio da Dignidade Humana, e sua relação com o Biodireito. Tal princípio, previsto logo no Artigo 1º, Inciso III da Carta Magna, tem por principal finalidade assegurar ao homem um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, de forma a preservar a valorização do ser humano.
É certo que de tal princípio emerge uma série de direitos e outros preceitos, todos perpetuados na Constituição Federal, como por exemplo: o artigo 5º, incisos III (não submissão a tortura), VI (inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença), VIII (não privação de direitos por motivo de crença ou convicção), X ( inviolabilidade da vida privada, honra e imagem), XI (inviolabilidade de domicílio), XII (inviolabilidade do sigilo de correspondência), XLVII (vedação de penas indignas), XLIX (proteção da integridade do preso) etc.
Sem qualquer dúvida, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é um princípio fundamental, pedra angular de todo o ordenamento jurídico pátrio, e é impossível mitiga-lo, o que confere ao mesmo caráter absoluto.
Consideremos três situações hipotéticas, todavia, comuns no cotidiano. Em cada uma delas é explícito como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é relevante para a tomada das decisões.
Primeiramente, consideremos um paciente hospitalizado com uma doença grave e que tem diante de si a dolorosa decisão de submeter-se ou não a uma intervenção médica delicada ou tratamento doloroso, incerto quanto ao seu sucesso. Digamos que, se bem-sucedida, essa intervenção ou tratamento poderá prolongar sua vida, porém causará efeitos colaterais permanentes e dolorosos. Pode ser que tenha que ficar sujeito pelo resto de sua vida a equipamentos tecnológicos de sustento artificial de vida.
Em outro caso, digamos que um paciente acidentado permaneça em estado vegetativo persistente, após todo esforço médico no ato de seu atendimento. Em tal situação, a pessoa não tem mais sua função voluntária. Embora o cérebro tenha um funcionamento “automático”, como por exemplo, estado de sono e vigília, reflexos como sucção, ou reação de acompanhamento do olhar, essa pessoa não tem plena consciência. Suponhamos que tal paciente deixou devidamente assinado um documento denominado DAV (Diretivas Antecipadas de Vontade), informando seu desejo de não ter sua vida prolongada em tal situação.
Antes de apresentarmos a terceira situação, falemos brevemente sobre os “xenotransplantes”, que é o transplante de órgãos de uma espécie para a outra. Nas últimas décadas várias experiências foram realizadas com sucessos animadores, utilizando-se órgãos de suínos em seres humanos. Embora não possa ser usada para transplantes definitivos devido sua rejeição, a pele dos suínos pode ser usada em transplantes temporários no homem, nos casos de queimaduras de terceiro grau, que causam grandes descontinuidades de sua pele. Ademais, o coração dos suínos é usado para fornecer válvulas cardíacas que são transplantadas para homens e crianças. Estas válvulas são retiradas do coração dos suínos e conservadas num preparado químico, podendo ser preservadas por 5 anos. As válvulas cardíacas do homem podem ser substituídas por válvulas mecânicas feitas com materiais artificiais. As válvulas dos suínos, porém, têm vantagens sobre essas mecânicas, pois são menos rejeitadas pelo organismo, têm a mesma estrutura e resistem mais às infecções.
Então, digamos que, em uma terceira situação hipotética, um paciente se recuse a aceitar tal tratamento, sob o argumento de que devido suas convicções religiosas o consumo de certos animais são considerados impuros. Para ele, aceitar o transplante de partes desse animal, no caso um suíno, significaria o mesmo que consumi-lo, o que o tornaria impuro. Tal paciente insiste em ser tratado de outra maneira, mesmo que isso significasse um aumento no risco de morte.
Em todos os casos acima, quem tomaria as decisões? A equipe médica, levando em conta o juramento realizado de “manter o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção...”, ou o paciente?
Sem dúvida, em que pese todo o esforço da Classe Médica em manter a vida do paciente, a decisão cabe ao paciente, levando em conta o Princípio da Autonomia de Vontade. Gize salientar que estamos falando de um paciente adulto e capaz, ciente do tempo e do espaço. No segundo caso mencionado, onde o paciente está em estado vegetativo persistente, se ele não deixou o documento Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) devidamente assinado, caberá aos familiares a decisão. Já em caso de menores a discussão é mais longa, ainda mais quando se tratar de menor amadurecido. Abordaremos especificamente sobre esse tema em um artigo futuro.
Observe que nas três hipóteses, o Princípio da Autonomia emergiu do Princípio da Dignidade Humana. Na primeira hipótese, embora o paciente tenha o Direito à Vida, a Autonomia do Paciente foi disciplinada pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Afinal, o desejo de todos é mais do que simplesmente “sobreviver”. Mais do que isso, é necessário “viver” com boa saúde, o que inclui o estado físico, mental e emocional.
No segundo caso, em que pese o estado vegetativo persistente, o indivíduo tem ainda mais respaldado seu direito à Dignidade. Ainda que inexista regulamentação clara no ordenamento jurídico brasileiro sobre tal situação, o Conselho Federal de Medicina disciplina tal assunto através da RESOLUÇÃO CFM nº1.995/2012, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes (DAVs).
Finalmente, no terceiro caso, como ficaria a Dignidade do paciente se este descobrisse mais tarde que parte de seu corpo pertencia a um animal que ele considera “impuro”? Sem dúvida, essa violação do seu corpo o afetaria absurdamente, principalmente no âmbito emocional e psicológico. Diversos relatos onde a decisão sobre determinado procedimento foi tomada pelo médico sem que este levasse em conta as convicções do paciente foram considerados pelos pacientes uma forma de estupro, uma violação de seu corpo. Felizmente, em anos recentes e com o fortalecimento do Biodireito, casos jurídicos dessa natureza são cada vez mais raros.
Desta forma, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é um dos princípios basilares do Biodireito, além dos princípios da autonomia, da beneficência, da não maleficência, do consentimento informado, da justiça e da importância da vida humana.
O Professor Alexandre de Morais assim define tal princípio:
“ (é)... um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outros, aparece como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil”. (1)
O avanço da medicina e a biotecnologia impulsionaram a quebra de antigos paradigmas sociais proporcionando inúmeros benefícios ao homem. Porém, tal avanço também proporcionou aos detentores do domínio biotecnológico um alto índice de poder. A Bioética veio para disciplinar tal poder adquirido, com alicerce nos princípios e direitos acima discutidos.
Diante de todo o exposto, vemos a importância de nos aprofundarmos como profissionais do direito nesse tema tão relevante. Afinal, citando as palavras de António Avelãs Nunes, professor de Economia Política da Faculdade de Direito de Coimbra, “Não pode ser um bom jurista quem apenas sabe Direito” (2)
É importante nos identificarmos com o ramo de direito a ser estudado, e literalmente nos apaixonarmos pela matéria. Algumas matérias, como o Biodireito, sem dúvida facilitam muito isso.
(Lucídio Rodrigues Ferreira é advogado, graduado pela FADIVA – Faculdade de Direito de Varginha, Pós-graduado em Direito Médico pela mesma faculdade, com especialização em Direito Hospitalar pelo IBDPAC-Instituto Brasileiro de Direito do Paciente (Brasília/DF). Pela 20ªSubseção da OAB/Varginha/MG, atuou como Presidente da Comissão Especial de Direito Médico e da Saúde (2016-2018) e como Presidente da Comissão de Biodireito, função que exerce atualmente (2019-2023)
Referências:
(1) (MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2002.p. 129.)
(2) Encontrado em: https://www.conjur.com.br/dl/texto-avelas-nunes.pdf
Lucídio Rodrigues Ferreira
