Exploração e escravidão moderna: Justiça condena clínica por usar dependentes químicos como mão de obra gratuita em Juiz de Fora
Elisa Ribeiro
8 de out.
3 min de leitura
Divulgação Ilustraiva
A Justiça do Trabalho reconheceu o vínculo empregatício entre uma instituição terapêutica de Juiz de Fora (MG) e seis trabalhadores acolhidos, condenando o estabelecimento e seu responsável legal, solidariamente, ao pagamento de verbas trabalhistas e indenizações. A decisão, proferida pelo juiz Luiz Olympio Brandão Vidal, titular da 4ª Vara do Trabalho da cidade, também determinou o pagamento de R$ 50 mil em danos morais coletivos, revertidos ao Fundo de Direitos Difusos, e R$ 10 mil em indenização individual a cada trabalhador.
A sentença decorre de ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), após fiscalização constatar que pessoas em situação de vulnerabilidade biopsicossocial — dependentes de substâncias psicoativas — eram submetidas a condições análogas à escravidão.
Denúncia e início das fiscalizações
A investigação começou após denúncia da Vigilância Sanitária de Juiz de Fora, que relatou a presença de seis homens trabalhando na instituição em condições precárias. Eles atuavam em serviços de horta, cozinha e construção civil, supostamente de forma “voluntária”. No entanto, as equipes encontraram alojamentos insalubres, água sem potabilidade comprovada e alimentos vencidos.
O relatório indicou a ausência de plano terapêutico, prontuários médicos ou acompanhamento profissional, o que descaracterizava o local como comunidade terapêutica. A constatação levou à atuação do MPT, que confirmou as irregularidades em nova inspeção realizada em outubro de 2023.
Condições degradantes e vulnerabilidade
Os fiscais identificaram que os trabalhadores viviam e laboravam no local, sem registro, salário, jornada definida ou equipamentos de proteção, realizando tarefas de construção civil sob supervisão direta do dirigente. Todos eram dependentes químicos, em tratamento inadequado e sem suporte médico, psicológico ou social.
As instalações eram improvisadas, com beliches danificados, higiene precária e água de mina armazenada em cisterna sem tampa. Até mesmo utensílios básicos, como uma panela de pressão, apresentavam risco de explosão.
Para o magistrado, as condições descritas configuram trabalho análogo à escravidão por degradação, agravadas pela vulnerabilidade biopsicossocial dos trabalhadores.
Defesa da instituição
Em sua defesa, a instituição alegou ser uma entidade sem fins lucrativos, atuante desde 2016 no acolhimento e reabilitação de dependentes químicos, e que os trabalhadores realizavam atividades voluntárias, conforme a Lei nº 9.608/1998. Sustentou ainda que não havia coerção, vigilância ou retenção de documentos, e que as tarefas desempenhadas possuíam caráter terapêutico e profissionalizante.
O juiz, entretanto, rejeitou os argumentos. Segundo ele, os serviços prestados reuniam todos os elementos de uma relação de emprego — pessoalidade, habitualidade, subordinação e expectativa de contraprestação material — e não se enquadravam como trabalho voluntário, já que havia dependência econômica e compensações, ainda que simbólicas.
Provas e fundamentos da decisão
De acordo com a sentença, quatro dos seis trabalhadores tinham termo de adesão “voluntário”, mas o documento era genérico e omitia a função exercida. Outros dois sequer possuíam qualquer contrato, o que, segundo o juiz, indicava “servidão branca”.
A decisão reconheceu também a validade dos autos de infração emitidos pelos auditores-fiscais e destacou que os relatos dos trabalhadores evidenciaram subordinação direta ao dirigente da instituição, ausência de remuneração, jornadas exaustivas e retenção parcial de benefícios sociais, como parte do Auxílio Brasil.
Enquadramento como escravidão contemporânea
O magistrado aplicou o Protocolo para Enfrentamento do Trabalho Escravo Contemporâneo, que amplia o conceito de escravidão para incluir situações de degradação, exploração de vulnerabilidades e jornadas abusivas, mesmo sem restrição à liberdade de locomoção.
Com base nesse entendimento, concluiu que a instituição utilizou o trabalho de dependentes químicos para obras de expansão, mascarando uma relação laboral sob a alegação de tratamento terapêutico. “Os réus se valeram da força de trabalho de pessoas vulneráveis para a expansão das edificações, em genuína relação de emprego informal”, afirmou o juiz.
Melhorias e condenação
Uma nova inspeção judicial, realizada em janeiro de 2025, constatou melhorias nas condições do local, como instalações reformadas, planos terapêuticos e equipe multidisciplinar, mas ainda identificou dois trabalhadores sem registro.
Com base na primazia da realidade, o juiz declarou nulos os contratos de trabalho voluntário e determinou o reconhecimento de vínculo com os seis trabalhadores, com anotação em carteira e pagamento de todas as verbas rescisórias.
A instituição foi ainda condenada a sanar as irregularidades trabalhistas e sanitárias, sob pena de novas sanções.
Na sentença, o magistrado enfatizou que o caso reflete a persistência de padrões históricos de exploração, agora adaptados ao contexto contemporâneo. “A utilização de pessoas em situação de vulnerabilidade e dependência química perpetua ciclos de marginalização e viola os princípios constitucionais da dignidade humana e do valor social do trabalho”, concluiu.
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