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Coluna Alerta Digital - 09/05/2024



A proteção das mulheres violentadas politicamente na Internet


A relação entre poder e violência é, não raras vezes, umbilicalmente entrelaçada, podendo-se muitas vezes pensar a inexistência daquele sem algum nível de violência, ainda que originária. Arendt (2022) distingue poder e violência, ao argumentar que aquele deriva do consentimento coletivo e é inerente à capacidade do agir coletivo, enquanto a violência é ato instrumental que, ao exigir justificativa em vez de legitimidade, destrói o poder. Nesse sentido, quando o primeiro primata descobriu um pedaço de madeira em sua mão como ferramenta capaz de ampliar alcance e força, apesar de estabelecida a associação entre violência e poder, a manutenção e sobrevivência deste dependeria de muito mais articulações e estruturações.

O fato é que o uso da força física para alcançar o poder e para manutenção de status quo, predominou nas sociedades humanas por priscas eras, ainda que cambaleante, até que outras formas de violência de igual ou superior grandeza pudessem se manifestar. Em suas obras, Foucault (1975) examina a violência como uma manifestação do poder que permeia as instituições sociais e molda o comportamento humano. E talvez venha daí a discriminação entre os gêneros, que, regra geral, tende a facilitar a ascensão do homem e a colocar a mulher em posição subalterna, visível e tangível até os dias contemporâneos.

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 (CF/88) estabelece a igualdade de todos perante a lei, inadmitindo qualquer distinção, e expressamente determina que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Mas será mesmo? Na sua revolução dos bichos, o visionário Orwell (2007) já havia dito que todos os animais são iguais, mas alguns (os porcos) são mais iguais do que outros. A discriminação entre iguais é uma constante; entre “menos iguais”, então, o que se deveria pensar?

A Constituição Cidadã foi construída sob a égide do Decreto nº 89.460, de 1984, que promulgou originalmente a Convenção das Nações Unidades, de 1979, sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, assinada pelo Brasil em Nova York, no dia 31 de março de 1981. Posteriormente, revogado pelo Decreto nº 4.377, de 2002, este efetuou nova promulgação da referida convenção, para excluir a reserva que havia sido feita aos artigos 15, parágrafo 4o, e 16, parágrafo 1o, alíneas (a), (c), (g) e (h).

É com base nessa convenção internacional e na CF/88, assim como na baixa participação política das mulheres, cujo direito ao voto somente foi reconhecido em 1932 e cuja representatividade no parlamento continua muito aquém do ideal (Gruneich & Cordeiro, 2021), que o Projeto de Lei nº 349/2015, transformado na Lei nº 14192, de 2021, propôs estabelecer normas para a prevenção e repressão da violência e da discriminação político-eleitoral contra a mulher.

Dentre outras transformações, a Lei nº 14192, incluiu ao Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965), o art. 326-B para punir, com reclusão de 1 a 4 anos, as condutas de “assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo”.

A violência ali retratada pela ótica da proteção do bem jurídico “cargo eletivo”, durante a campanha eleitoral, e desempenho do “mandato eletivo”, pode apresentar-se tanto sob a forma física quanto psicológica. Trata-se de crime formal, ou seja, que não exige o resultado da conduta, entendida como o uso intencional da força ou do poder para assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar com o fim específico exigido normativamente. A consumação do crime ocorre com a simples realização da conduta descrita no tipo penal, independentemente do resultado ou dano efetivo à vítima. O foco está na ação realizada e na intenção de impedir ou dificultar a campanha eleitoral ou o desempenho do mandato eletivo da mulher, e não necessariamente no resultado dessas ações.

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Tais condutas revelam-se como crimes de ódio que afetam de forma grave o contexto eleitoral, posto contribuírem decisivamente para alijar mulheres da participação e dos consequentes debates construtores da democracia. Com sua visão e distinta forma de perceber o mundo e as necessidades sociais, as mulheres são imprescindíveis ao objetivo de reconhecer efetiva representatividade ao palco político que constrói e revela os verdadeiros interesses da nação.

O novo tipo penal eleitoral do art. 326-B, tem como sujeito ativo qualquer pessoa, mas como sujeito passivo apenas a mulher candidata a cargo eletivo, durante a campanha eleitoral, ou a mulher detentora de mandado eletivo, durante o exercício deste. No conceito de mulher, a proteção penal deve abranger a mulher transgênero, a exemplo do que ocorre com a Lei Maria da Penha, mas não a mulher que esteja a ocupar a suplência de mandato eletivo.

E quanto a sua modalidade cibernética? O crime de violência política de gênero na internet costuma ocorrer por meio de assédio, ameaças e disseminação de informações falsas ou depreciativas contra mulheres políticas, visando prejudicar suas campanhas ou mandatos. São exemplos de violência política de gênero na modalidade online os ataques que se caracterizem como assédio, constrangimento, humilhação, perseguição ou ameaça em redes sociais, fóruns online e outras plataformas digitais.

O uso de deepfake, ou seja, criação e disseminação de áudio, vídeo e imagens com extremo realismo e capacidade de levar o eleitor a acreditar que se trata de conteúdo produzido ou representativo da candidata ou detentora do mandato eletivo em prejuízo de sua imagem pública ou privada, é outra forma de instrumentalizar a tecnologia para o cometimento da conduta criminosa em ambiente cibernético. Os agressores costumam utilizar o aparente anonimato e a ampla disseminação que a internet proporciona para intensificar o impacto de suas ações contra as vítimas, frequentemente com o fito de intimidar ou silenciar mulheres na política.

Nas eleições de 2016 nos Estados Unidos, por exemplo, a então candidata presidencial Hillary Clinton foi alvo de uma quantidade significativa de violência política de gênero online. Dentre as condutas criminosas de que foi vítima, em razão da candidatura eleitoral, é possível destacar a disseminação de notícias falsas, ataques pessoais e ameaças por meio de redes sociais e outros canais digitais. Esses ataques foram muitas vezes caracterizados por comentários sexistas e misóginos, visando desacreditá-la como candidata por ser mulher. Trata-se de caso bastante ilustrativo de como a violência política de gênero pode ser amplificada no ambiente digital e contribuir para alterar o resultado de eleições.

Enquanto polícia judiciária eleitoral, compete à Polícia Federal a investigação de qualquer crime eleitoral, sem prejuízo da cooperação de outros órgãos de investigação e segurança pública, dadas as dimensões continentais do território nacional em proporção ao efetivo disponível. No âmbito da PF, os casos que envolvem violência política de gênero, previstos no art. 326-B, do Código Eleitoral, recaem sobre a Diretoria de Combate a Crimes Cibernéticos e as Delegacias de Repressão a Crimes Cibernéticos da PF, com sede em cada unidade da federação e no Distrito Federal.

O enfrentamento da violência política de gênero, especialmente em sua forma digital, é de extrema relevância. Não se trata apenas de garantir a igualdade formal entre homens e mulheres diante da lei, mas especialmente de fortalecer os pilares da nossa democracia, garantindo que todas as vozes, independentemente de gênero, cor ou etnia, sejam ouvidas e respeitadas. Este é um caminho necessário para construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e justa, onde cada indivíduo possa contribuir plenamente para o desenvolvimento político e social sem enfrentar barreiras discriminatórias.



Referências

Foucault, M. (1975). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes.

Arendt, H. (2022). Sobre a violência. Edição Kindle. Civilização Brasileira.

Gruneich, D. & Cordeiro, I. (2021, 16 de setembro). Brasil avança no enfrentamento à violência política contra a mulher: a Lei nº 14.192. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-16/opiniao-violencia-politica-mulher-lei-14192/

Orwell, G. (2007). A revolução dos bichos. Traduzido por Heitor Aquino Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras.


Gazeta de Varginha

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