Crimes Hediondos Cibernéticos no Projeto de Lei 4.221/2021
O Projeto de Lei 4.221/21/2021 aprovado em dezembro de 2023 pelo Senado Federal e que agora segue à sanção presidencial representa um marco significativo na legislação brasileira protetiva de crianças e adolescentes ao instituir medidas que buscam enfrentar a crescente violência em estabelecimentos educacionais e congêneres. Segue, assim, na esteira da Lei 13.185, de 2015, que já havia previsto o Programa de Prevenção e Combate ao Bullying presencial e digital, com possibilidade de responsabilização de escolas, clubes e agremiações recreativas por omissão ou negligência em casos envolvendo essas práticas ilícitas.
Destaca-se do projeto o estabelecimento de uma Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente que objetiva: a) aprimoramento das ações preventivas e de enfrentamento ao abuso infantil; b) fortalecimento das redes de proteção contra esses crimes; c) promoção de estudos, pesquisa e avaliação de resultados das políticas preventivas; d) garantia de atendimento especializado para crianças e adolescentes em situações de exploração sexual e de suas famílias; e) criação de espaços democráticos para participação e controle social.
A iniciativa dessa política é um passo de grande significado, em especial por abordar a questão de maneira holística e multidimensional. O foco na gestão de ações preventivas, fortalecimento das redes de proteção, promoção de conhecimento, atendimento especializado e na criação de espaços democráticos para participação e controle social, indica um esforço para colocar a pauta do abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes na ordem do dia e em todas as suas facetas.
Apesar da importância da proposta, que certamente caminha em harmonia com o princípio da proteção integral de criança e adolescente, previsto no art. 227, da Constituição Federal, chama a atenção a criação uma nova categoria de tipos penais, que aqui denomino como crimes hediondos cibernéticos.
Crimes hediondos são categorizados como aqueles considerados extremamente graves, em face de sua natureza ou forma de execução causar verdadeira repulsa social, o que justificaria um tratamento penal proporcional, que inclui penas mais altas, cumprimento de pena em condições mais severas, além da inelegibilidade para institutos como fiança, anistia, graça, indulto ou liberdade provisória.
Muitos compêndios apontam a origem etimológica do termo “hediondo” ao latino “foeditas”, a indicar algo repugnante, desagradável ou horrendo. Até o final de 2023, a lei 8072, de 1990, prevê como hediondos os seguintes crimes: homicídio qualificado; homicídio praticado por grupo de extermínio; latrocínio, extorsão qualificado pela morte; exterosão mediante sequestro e na forma qualificada; estupro; estupro de vulnerável; epidemia com resultado morte; falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; genocídio. Um dado interessante é que, no que concerne à quantidade de pena em abstrato, tais crimes apresentam uma média de pena mínima em pouco menos de 12 anos e máxima de quase 21 anos de reclusão, o que não deixa de ser uma característica bastante interessante a integrá-los nessa categoria. A maioria deles não se caracteriza pela ocorrência em ambiente digital, contudo, à exceção das discussões acadêmicas sobre estupro virtual, que inclui o estupro de vulnerável.
Quanto a esse ponto, nota-se que o PL 4.221/2021 prevê condutas que são praticadas tipicamente por meio da rede mundial de computadores, em meio ou ambiente digital, e que devem ser equiparadas àquele rol de crimes, o que autoriza afirmar que se trata de criação de crimes hediondos cibernéticos, uma interessante inovação, verdadeiro artefato cultural em um contexto jurídico-sociológico, a demarcar o que os alemães denominam de “Zeitgeist”, o espírito de uma época.
Foram selecionados como crimes hediondos cibernéticos o tipo penal previsto no art. 122, caput, e §4º do Código Penal, consistente no “induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação realizados por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitidos em tempo real”, assim como os art. 240, §1º, e o art. 241-B ambos da Lei nº 8.069, de 1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Em relação ao art. 240, do ECA, o projeto transforma o §1º em inciso I, com manutenção da redação original, e cria um inciso II, no qual prevê como crime as condutas de exibir, transmitir, auxiliar ou facilitar a exibição ou transmissão em tempo real de cenas de abuso sexual infantil, por qualquer meio ou ambiente digital. Aqui o legislador tem claramente a meta de ampliar a proteção para abranger a intermediação e transmissão ao vivo desses atos, com penas que variam de 4 a 8 anos de reclusão e multa. Trata-se, todavia, de uma quase reprodução integral das condutas típicas já previstas no art. 241-A, e §1º, do ECA, que, por motivo desconhecido, não foi incluído como crime hediondo.
Por outro lado, sem qualquer alteração em sua redação ou na pena, o PL 4.221/2021 apenas incluiu o art. 241-B, do ECA, no rol dos crimes hediondos, e passou a considerar como um novo crime hediondo cibernético a conduta de adquirir, possuir ou armazenar material de abuso sexual infantil em ambiente digital. Deixou, todavia, de incluir, por exemplo, o crime de aliciamento, assédio, instigação ou constrangimento para prática de ato libidinoso contra criança, conhecido como grooming, entre os crimes hediondos.
Muito embora a pena para quem pratica grooming contra criança seja ligeiramente inferior à da posse de material de abuso sexual infantil, parece-nos que aquela conduta é de uma gravidade bem superior, o que mereceria, inclusive, o devido ajuste legislativo ao preceito secundário do referido tipo penal. Ressalte-se que em ambas as hipóteses do ECA, os tipos penais apresentam preceitos secundários que destoam larga e amplamente dos demais crimes atualmente previstos como hediondos na Lei 8.072/90, o que também é de chamar a atenção.
Ao categorizar tais condutas como hediondas, o Poder Legislativo destaca a gravidade crescente do abuso sexual infantil no ambiente digital, certamente impressionado pelos inúmeros casos noticiados pela mídia com ocorrência em redes sociais abertas e de fácil acesso, com dispensa de maiores conhecimentos tecnológicos, o que indica a necessidade premente de uma resposta social adequada a esses tempos que a todos assombram.
Contudo, uma vez estabelecido que tais delitos necessitam ter esse tratamento mais gravoso, emerge a dúvida sobre qual teria sido o fundamento racional da seletividade mencionada, que implica omissão de igual tratamento a outros tipos penais similares ou até de maior gravidade, que possam envolver violência física e psicológica contra crianças e adolescentes, como é o caso do grooming?
Apesar da crítica que se faça à aparente arbitrariedade na seleção de tipos penais a compor a lei de crimes hediondos e a uma certa insegurança jurídica decorrente da sua sujeição às intempéries da política, entendemos que a proposta de incluir no ordenamento jurídico-penal nessa categoria de crimes, além da criação de uma política nacional de prevenção, representa um avanço significativo na legislação de proteção à infância e adolescência no Brasil. No entanto, não se pode negar que há equívocos aparentes que necessitariam ser corrigidos antes da sanção presidencial.
A escolha específica de certos crimes para serem classificados como hediondos, enquanto outros são omitidos, requer uma reflexão crítica. Iniciativas legislativas e políticas necessitam de tempo para estudos, pesquisa e a devida maturação, além de testes práticos que permitam verificar se a abordagem da questão da violência contra crianças e adolescentes é feita da maneira mais abrangente e inclusiva possível, de modo a garantir a proteção efetiva de nossas crianças e adolescentes contra todas as formas de abuso e exploração, dentro ou fora do ambiente digital.
Fontes consultadas:
Terra, O. (2021). Projeto de Lei nº 4.221/2021: Institui medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares, prevê a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e as Leis nºs 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), e 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Câmara dos Deputados, 2021. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/160159. Acesso em: 20. dez. 2023.
Sousa, S.S. (2015). Investigação Criminal cibernética: por uma política criminal de proteção à criança e ao adolescente na internet. Rio de Janeiro: Núria Fabris. Disponível em: http://tinyurl.com/livrociber
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