PIRATARIA DE SOFTWARE: ENTRE A LEGALIDADE E A ÉTICA
Os leitores mais jovens desta coluna certamente lembrarão do inesquecível Capitão Jack Sparrow, da série Piratas do Caribe, imortalizado pelo competente Johnny Depp, muito embora o velho Capitão Gancho, das aventuras de Peter Pan, seja uma referência já universal para todas as gerações. Em um caso ou outro, a expressão “pirataria” costuma vir associada a atividades ilícitas marítimas desde tempos imemoriais.
A partir de meados da década de 1970, essa terminologia também começou a ser utilizada em um contexto bastante distinto, para designar indivíduos que faziam cópias não autorizadas, distribuição, compartilhamento e uso ilegal de programas de computador, também conhecidos como “software”.
A facilidade de produzir cópias não autorizadas e a reprodução de software sem o consentimento do detentor dos direitos, tornou-se ao longo dos anos uma prática quase que habitual para muitos indivíduos, ao ponto de sequer adotarem medidas evasivas contra ações policiais, muito pelo contrário.
A situação chegou a um ponto em que, no ano de 2006, a Polícia Federal se viu obrigada a deflagrar a operação I-Commerce (em referência a “ilegal commerce”, ou comércio ilegal), em decorrência de inúmeras queixas criminais recebidas de associações protetoras de direitos autorais, que noticiavam a produção e venda de produtos de informática contrafeitos por meio da rede mundial de computadores em 13 Estados do Brasil e no Distrito Federal.
Durante os trabalhos de investigação, a PF verificou similaridade no “modus operandi” dos criminosos, que, em grande parte das vezes, realizavam cópia de músicas de artistas internacionais e de jogos de videogame, gravação em mídias digitais (à época CDs e DVDs), e, finalmente, comercialização do material produzido em plataformas de comércio eletrônico e redes sociais.
Apesar da ação da PF ter sido reduzida ao esbarrar em questões jurídicas como a discussão da competência federal para a investigação, processo e julgamento, não é insensato afirmar que a pirataria de software é uma questão complexa e muitas vezes podem haver dificuldades em reconhecer práticas ilícitas, especialmente em um mundo digital onde o acesso a conteúdos é vasto e facilmente disponível.
Exemplos de piratarias de software podem ser visto quando há uso de chaves de ativação compartilhadas ou furtadas, download de softwares crackeados, uso de versões não autorizadas de jogos ou aplicativos, compartilhamento de contas de software pago, instalação de software de fontes não confiáveis, uso de softwares educacionais sem a devida licença do autor.
O programa de computador é definido pela Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998 (“Lei de Software”), como “a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados”.
Em outros termos, deve-se considerar como software qualquer coleção de instruções escritas em linguagem de programação com o objetivo de serem executadas pelo hardware do computador para a realização de uma tarefa específica.
Nesta descrição inclui-se, por exemplo, a reprodução de uma cópia não autorizada, ou sem a devida licença, de um programa de computador como o famoso editor de texto “Word”, da empresa Microsoft. Referida conduta está prevista como crime no art. 12, §1º, da Lei nº 9.609, de 1998, com pena em abstrato de reclusão de um a quatro anos e multa ao infrator.
Em face de sua natureza e propósito distintos, a tutela dos direitos relativos a um programa de computador difere, em muitos aspectos, da proteção de obras literárias e artísticas. No primeiro caso, o bem jurídico necessita muito mais que se evite a cópia não autorizada, a distribuição e a modificação do software, pois isso pode afetar diretamente a viabilidade comercial e a integridade funcional do programa. Em contraste, obras literárias buscam uma proteção que permita maior liberdade de interpretação e crítica, o que reflete sua natureza como forma de expressão cultural e artística.
Um exemplo bem notável dessa diferença de tratamento é expresso no prazo de vigência da tutela de proteção que, no caso de programa de computador, vigora por cinquenta anos, a contar do dia 1º de janeiro do ano subsequente ao de sua publicação, ou de sua criação, enquanto que o direito autoral de obras literárias permanece vigente por até 70 anos após a morte do autor.
Uma vez que um software vale pelo uso que dele é feito, sua pirataria representa um impacto econômico substancial, em especial porque tem o efeito de inibir a inovação. Se o autor de um programa de computador sabe que depois de todo o trabalho e investimento feito, virá alguém e simplesmente fará uma cópia e poderá obter o mesmo lucro ou até mesmo superior, que incentivo ele terá em realizar a difícil tarefa?
É evidente que o investimento feito na criação de um software depende da obtenção de lucro com sua comercialização, que serve para cobrir custos, gerar empregos e garantir novos investimentos. Não à toa, o art. 12, §3º, II, da Lei nº 9.609, de 1998, evidencia que a ação penal, em regra dependente de queixa, passa a ser pública incondicionada se a pirataria resultar em sonegação fiscal, perda de arrecadação tributária ou prática de quaisquer dos crimes contra a ordem tributária ou contra as relações de consumo.
A ausência das receitas para o desenvolvedor do software pode afetar o financiamento de novas pesquisas e o desenvolvimento de novos produtos, mas também prejudica as “burras públicas”. Ao comercializar uma cópia de um programa de computador sem qualquer investimento, o pirata gera uma concorrência desleal com a empresa ou criador do programa, desestabiliza a lógica da indústria e desafia a economia do país.
Naturalmente, a disparidade econômica entre os usuários e as grandes empresas de software, em especial após a obtenção de lucros muito superiores aos custos envolvidos na produção desses produtos, é um argumento que não pode ser simplesmente ignorado “de lege ferenda”.
Se, por um lado, é válida a alegação de que a pirataria rouba os criadores de seu devido lucro e desincentiva a inovação, não deixa de ser importante refletir com quem vê na prática uma resposta à inacessibilidade econômica dos softwares para pessoas em condições de pobreza.
Essa dualidade ética, que também é vista no contexto do uso de medicamentos genéricos e, em caso mais extremos, na própria quebra de patentes em casos de emergências de saúde pública, é um ponto crucial no debate sobre a legitimidade e a equidade no mundo da tecnologia e do software.
Nada obstante o amor ao debate, não se pode olvidar que em um estado democrático de direito, a legislação é aplicada como manifestação do poder da maioria. Nesse sentido, a Lei de Software é ferramenta essencial e orientadora na luta contra a pirataria de programas de computador, ainda que a sua eficácia seja apenas parte da solução.
A busca por um certo equilíbrio entre proteção de direitos autorais e acessibilidade, em especial no campo do debate político, contudo, não admite ignorar que determinadas condutas, como a pirataria, são ilegais e devem ser evitadas, sob risco do velho Capitão Gancho vir a receber a inesperada visita de um Peter Pan de óculos e jaleco preto com letras douradas.
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