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Coluna Jurídica Gazeta - 12/11/2025

  • gazetadevarginhasi
  • há 7 dias
  • 4 min de leitura
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Sentença que impôs mais de 32 anos de prisão ao dono de uma clínica clandestina revela o perigo de disfarçar a violência sob o nome de “tratamento” e reacende o debate sobre o respeito à dignidade humana em espaços de acolhimento.

 


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por Dr. João Valença Advogado (OAB 43370) especialista em diversas áreas do Direito e cofundador do escritório VLV Advogados, referência há mais de 10 anos no atendimento humanizado e com atuação em mais de 5 mil cidades em todo o Brasil.


A recente condenação do dono de uma clínica clandestina para usuários de drogas, em Ribeirão Pires (SP), a mais de 32 anos de prisão por tortura e lesão corporal, reacende uma discussão dolorosa e necessária sobre os limites entre o tratamento e a violação da dignidade humana. O caso revela como práticas que se apresentam como “recuperação” podem esconder verdadeiros cárceres privados, sustentados pelo discurso de cuidado, mas movidos pela negligência, abuso e desrespeito aos direitos fundamentais.

A decisão da Justiça paulista evidencia a importância de se fiscalizar instituições que, sob o pretexto de acolhimento, se afastam completamente das normas legais e éticas. E mostra, sobretudo, que a boa intenção nunca pode justificar a supressão da liberdade ou o sofrimento imposto a pessoas em situação de vulnerabilidade.

A sentença reforça que o Estado não pode tolerar espaços que violam direitos sob o disfarce da cura. A privação da liberdade, ainda que com o argumento de proteção, não pode ocorrer fora dos parâmetros legais. O acolhimento terapêutico deve ser voluntário, supervisionado e pautado por critérios técnicos, jamais pelo autoritarismo.
 
Entre o acolhimento e o abuso: o que estava em jogo
De acordo com as investigações, os internos da clínica eram mantidos em condições desumanas, submetidos a agressões físicas, isolamento forçado e privações. O local não possuía autorização para funcionar como estabelecimento de saúde ou centro de reabilitação, e mesmo assim recebia pessoas encaminhadas por familiares, muitas vezes sem qualquer acompanhamento médico ou psicológico.

O discurso de “tratamento” servia de fachada para a prática de cárcere privado, crime previsto no artigo 148 do Código Penal, que pune quem priva alguém de sua liberdade de locomoção por qualquer meio ilícito. No caso em questão, a Justiça reconheceu ainda os crimes de tortura e lesão corporal, previstos nas Leis nº 9.455/97 e 11.340/06, respectivamente, diante da gravidade das condutas.

A sentença, ao impor uma pena exemplar, reafirma que o Estado não pode tolerar espaços que violam direitos sob o disfarce da cura. A privação da liberdade, ainda que com o argumento de proteção, não pode ocorrer fora dos parâmetros legais. O acolhimento terapêutico deve ser voluntário, supervisionado e pautado por critérios técnicos, jamais pelo autoritarismo.
 
O cárcere privado e a ilusão do controle
O cárcere privado é uma das formas mais severas de violação da liberdade individual, pois retira do ser humano sua autonomia básica, o direito de ir e vir. Ele ocorre quando alguém é mantido contra sua vontade em um local, seja por meio de ameaça, violência ou abuso de autoridade. No contexto de clínicas de reabilitação, esse crime se torna ainda mais perverso, pois se apoia na vulnerabilidade de pessoas adoecidas e no desespero de familiares em busca de ajuda.

É comum que parentes, movidos pelo medo da recaída ou pelo sofrimento do vício, recorram a locais que prometem “resultados rápidos”, sem perceber que, ao entregar o familiar a uma instituição irregular, podem estar contribuindo para práticas criminosas. O direito penal, contudo, é claro, a internação involuntária só pode ocorrer com laudo médico, autorização judicial e fiscalização das autoridades de saúde. Fora disso, qualquer privação de liberdade é ilegal.

O caso de Ribeirão Pires escancara o quanto a ausência de fiscalização e a banalização do sofrimento alheio criam um terreno fértil para abusos. E ensina que o cuidado verdadeiro começa com o respeito à lei, à dignidade e ao consentimento.
 
Responsabilidade e dever de vigilância
Sob a ótica jurídica, o dono da clínica incorreu em múltiplas formas de responsabilidade, penal, civil e administrativa. Penal, pelos crimes de tortura, lesão corporal e cárcere privado. Civil, pelos danos morais e materiais causados às vítimas e suas famílias. E administrativa, por manter um estabelecimento em funcionamento sem licença sanitária e fora das normas da vigilância.

A condenação também reforça o papel do Estado e da sociedade na prevenção desses crimes. É dever do poder público fiscalizar, mas também da comunidade denunciar e questionar instituições que atuam de forma clandestina. A omissão, nesse cenário, pode custar vidas.

Do ponto de vista técnico, trata-se de um caso que ilustra a aplicação direta dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da legalidade, pilares do Estado Democrático de Direito. Nenhuma finalidade, por mais nobre que pareça, pode se sobrepor ao respeito a esses fundamentos.
 
A lição jurídica e humana
O episódio deixa uma lição que vai além do processo judicial. A dependência química é um problema de saúde pública e deve ser tratada com políticas sérias, acompanhamento profissional e respeito aos direitos humanos. O que aconteceu em Ribeirão Pires não foi tratamento, foi tortura. Não foi cuidado, foi opressão.

Como advogado, vejo com clareza que o Direito Penal, nesse contexto, cumpre seu papel pedagógico ao reafirmar limites éticos e sociais. A punição não é apenas uma resposta ao crime, mas também um alerta, quem lida com a dor do outro deve fazê-lo com responsabilidade, técnica e empatia, nunca com violência ou aprisionamento.

Que a sentença sirva de marco para que o poder público intensifique a fiscalização e para que as famílias compreendam que buscar ajuda legítima é um ato de amor, enquanto entregar alguém a espaços ilegais é perpetuar a violência. O verdadeiro cuidado é aquele que liberta, e não o que aprisiona.
 
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm. Acesso em: 10 nov. 2025.

G1. Justiça condena dono de clínica clandestina de usuários de droga a mais de 32 anos de prisão por tortura e lesão corporal. G1 São Paulo, São Paulo, 8 nov. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/11/08/justica-condena-dono-de-clinica-clandestina-de-usuarios-de-droga-a-mais-de-32-anos-de-prisao-por-tortura-e-lesao-corporal.ghtml. Acesso em: 10 nov. 2025.

VLV ADVOGADOS. Cárcere privado: o que é, exemplos e consequências. Disponível em: https://vlvadvogados.com/carcere-privado/. Acesso em: 10 nov. 2025.
 

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