
A desinformação digital ameaça a democracia?
“Vivemos no melhor dos mundos possíveis”, repetia Cândido a cada tragédia, falha, injustiça ou situação absurda vivenciada ao longo do romance “Cândido ou O Otimismo (“Candide, ou l’Optimisme”), publicado em 1759, em pleno movimento iluminista, pelo francês François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire.
A famosa frase refletia, na verdade, uma dura crítica ao otimismo filosófico de Leibniz, retratado como o professor Pangloss, mentor de Cândido, que defendia que mesmo as maiores adversidades e tragédias ocorrem por um bem maior. Apesar da confiança (ou fé) que muitos possuem (em Deus, nas instituições, no futuro), que pode traduzir-se em otimismo exacerbado, durante todo o século XX muitas foram as tragédias históricas perpetradas pela humanidade que nos permite pender muito mais a Voltaire que a Leibniz nesse ponto: duas grandes guerras mundiais, o holocausto, genocídio em Ruanda, desastre de Chernobyl, dentre outras.
Em todas elas, em comum, problemas fundamentais no processo comunicacional e de informação. Tomemos como exemplo o Holocausto. Como bem sabemos, uma das principais ferramentas utilizadas pela ideologia nazista foi a desinformação. Falsas propagandas estereotipavam os judeus e propagavam mentiras que alimentaram o ódio e o medo da população alemã, recém derrotada na Primeira Guerra Mundial, o que veio a justificar a perseguição sistemática daquele povo. Atribui-se a Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, a crença e a prática da manipulação da mentira que, por repetição terminaria por se tornar, na crença coletiva, como uma verdade.
Democracias tem como princípios a soberania popular, igualdade política, pluralismo de ideias, liberdade de expressão, defesa dos direitos humanos fundamentais, o estado de direito e eleições livres e justas. Desinformações, por outro lado, promovem a erosão da confiança nas pessoas e nas instituições, falsa polarização e hostilidade entre diferentes grupos, interferência eleitoral, falso consenso, desencorajamento de participação no processo político, desvio de atenção do público e dos formuladores de políticas públicas em relação aos problemas reais e urgentes.
O uso quase hipnótico e massivo das mídias sociais no século XXI, ao seu turno, em especial por meio de dispositivos móveis, tem permitido que a desinformação, definida como a disseminação deliberada de informações falsas ou enganosas (Lewandowsky et al., 2017), alcancem um novo patamar. Bradshaw e Howard (2019), entre 2017 e 2019, monitoraram campanhas de propaganda computacional em mídias sociais em todo o planeta, em especial Facebook e Twitter, e detectaram o envolvimento de partidos políticos e agências governamentais, incluindo regimes considerados ditatoriais, em tais iniciativas, muitos em busca de explorar vulnerabilidades existentes e a carência de regulação.
As eleições presidenciais dos EUA, em 2016, exemplificam bem esse novo cenário global. A partir de uma sofisticada campanha de desinformação em mídias sociais, a Agência de Pesquisa da Internet (IRA), baseada na Rússia, também conhecida como “fábrica de trolls”, criou na época diversas contas falsas em plataformas como Facebook, Twitter e Instagram, as quais foram utilizadas para publicar conteúdo que promoviam discórdia entre eleitores americanos, com consequente influência na opinião pública (Mueller, 2019). Paralelamente, relatório apresentado por Robert Mueller, ex-diretor do FBI nomeado como procurador especial do Departamento de Justiça dos EUA para investigar a interferência russa nas eleições de 2016, concluiu que houve hacking e liberação de e-mails de indivíduos e entidades associadas ao Partido Democrata exatamente com aquela finalidade. Esses e-mails com informações prejudiciais à campanha da, então, candidata à presidência, Hillary Clinton, foram publicados através de sítios como WikiLeaks e amplamente divulgados na mídia.
No mesmo período, a empresa de consultoria política Cambridge Analytica coletou dados de milhões de usuários do Facebook sem consentimento, por meio de um aplicativo de quiz, a partir dos quais criou seus perfis psicográficos, o que permitiu direcionar anúncios políticos de maneira altamente específica (Cadwalladr & Graham-Harrison, 2018), explorar medos e preocupações das pessoas e, em última análise, influenciar comportamentos e votos.
No Brasil, as eleições de 2018 também se notabilizaram por alegações de campanhas de desinformação em mídias sociais (Santos, 2020). Notícias falsas e desinformação disseminadas em larga escala, muitas vezes por meio de plataformas de mensagens privadas, como o WhatsApp, tornou difícil rastrear a origem ou conter a disseminação dessas informações. A Polícia Federal chegou, inclusive, a apurar formalmente ações de desinformação digitais em massa, como no Inquérito 4781 (“Inquérito das Fake News”), instaurado em 2019, no Supremo Tribunal Federal.
O amigo leitor poderia aqui indagar o motivo de organizações e pessoas terem proliferado no período ao ponto de se tornarem uma preocupação global. Alguns fatores podem explicar a atuação dessas organizações, chamadas por muitos de verdadeiras “milícias digitais”: aumento exponencial do uso de mídias sociais, alta disponibilidade de dados de usuários nessas plataformas, alta polarização política e falta de regulamentação.
Importante notar que a eficácia de campanhas de desinformação tem confirmação em pesquisas na área da psicologia. Estudos apontam que indivíduos em geral têm maior propensão a acreditar em informações que confirmam suas crenças, fenômeno conhecido como viés de confirmação (Nickerson, 1998). E uma vez que uma crença é estabelecida, torna-se extremamente difícil desfazê-las, mesmo quando confrontada com fatos que a contradizem (Lewandowsky et al., 2012), a exemplo de discussões sobre “terraplanismo”. Daí talvez o interesse de regimes autoritários em ferramentas que viabilizam essa prática.
A desinformação em massa em um mundo cada vez mais conectado representa um perigo não apenas para o indivíduo, mas também para o estado democrático de direito. A democracia depende de cidadãos informados que podem tomar decisões baseadas em fatos e evidências (Lewandowsky et al., 2017). Quando se permite o florescimento de desinformação em massa, o processo kafkiano passa a fazer parte do cotidiano, com forte tendência de perda de confiança nas instituições.
Apesar do progresso tecnológico, médico e social sugerir que “vivemos no melhor dos mundos possíveis”, desafios como a desigualdade, a fuga da realidade nas mídias sociais e as tensões políticas fortalecidas pela desinformação digital global massiva parecem sugerir o contrário.
