Discursos e práticas de ódio na internet do Século XXI e uma possível solução
Desde os primórdios da humanidade, o racismo e as diferentes formas de discriminação tem sido uma mancha indelével em nossa história. O ex-ministro da Justiça do Reich, Franz Gürtner promoveu a ideia de que o direito penal deveria se concentrar no “autor” em vez do “ato”. Isso significava que os indivíduos poderiam ser punidos não apenas pelo que faziam, mas pelo que eram ou pelo que se acreditava que poderiam fazer no futuro. Isso levou à criminalização e perseguição de grupos inteiros com base em sua raça, religião, orientação sexual e outras características inatas. Os judeus, em particular, foram alvo de leis discriminatórias que os puniam simplesmente por serem judeus.
O Código Penal italiano de 1930, conhecido como Código Rocco e que serviu de inspiração ao Código Penal Brasileiro de 1940, introduziu o conceito de “periculosidade”, que permitia a punição de indivíduos com base em sua propensão percebida para cometer crimes, mesmo que nenhum crime tivesse sido cometido. Isso permitia a detenção de indivíduos considerados “perigosos” para a sociedade.
O “direito penal de autor” refere-se a um sistema em que as pessoas são punidas não apenas com base em seus atos, mas também com base em suas características pessoais, antecedentes, personalidade ou propensão percebida para cometer crimes. Em vez de focar no ato em si (o “fato”), o direito penal de autor foca no “autor” do ato. Esse conceito é amplamente rejeitado na maioria dos sistemas jurídicos modernos, pois é visto como incompatível com os princípios fundamentais de justiça, igualdade e direitos humanos.
Direito penal de autor, em vez de direito penal de fato, que vigeu no Código Penal da Alemanha Nazista, no Código Rocco Italiano, de influência fascista, e com resquícios na nossa legislação penal, a exemplo da Lei de Contravenções Penais, que punia a mendicância no seu art. 59, é manifestação jurídica de que a discriminação racial, de cor, étnica, religiosa, de procedência nacional ou mesmo de gênero já foi institucionalizada e aceita em muitas sociedades
O Estado democrático brasileiro, conforme declarado no preâmbulo constitucional, foi instituído em 1988 para “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.
O dever de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, aliás, é inserido como um dos objetivos fundamentais da República, previstos no seu art. 3º. Ao seu turno, mas não menos importante, art. 5º, XLI, da Constituição Federal de 1988, determina a previsão legislativa de punição de qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, verdadeira cláusula pétrea e garantia fundamental.
Em cumprimento ao mandamento constitucional, a Lei nº 7.716, de 5 janeiro de 1989, Lei do Racismo ou da Discriminação Racial, previa desde o seu artigo vestibular que serão punidos os crimes que sejam resultado de preconceitos de raça e de cor. Referida determinação legislativa, apesar de sua importância fundamental para uma sociedade materialmente tão desigual e preconceituosa, fruto de um passado de profundas raízes e marcas históricas com consequências sociais, culturais e políticas percebidas mesmo no Século XXI, provou-se insuficiente para atender toda a variedade de condutas discriminatórias que afetavam a população de nosso território.
Para dar efetividade ao mandamento constitucional e perseguir concretamente os objetivos fundamentais da República, em 1997, passados oito anos e muitos casos controversos abrangendo bens jurídicos relevantes que se percebiam desprotegidos, importante alteração legislativa produzida pela Lei nº 9.459, ampliou seu alcance para abranger os crimes que sejam produto de condutas discriminatórias ou preconceituosas não apenas quanto à raça e cor, mas também quando se referem à etnia, religião ou procedência nacional.
Com a alteração, hipóteses de discriminação violenta que não se referiam apenas ao conceito de raça, cientificamente questionável e juridicamente discutível, e à subjetividade da cor da pele, puderam ser protegidos pela legislação penal. Um dos casos mais famosos ocorreu em 1995, quando o então bispo da igreja Universal, Sérgio Von Helder, chutou uma imagem representativa de Nossa Senhora Aparecida e se tornou um símbolo de intolerância religiosa, apesar de que outras condutas muito mais graves são rotineiramente praticadas contra outras vertentes religiosas, vítimas por vezes de torturas e homicídios, sem a mesma repercussão midiática.
Na mesma linha de discriminação violenta podem ser incluídos os crimes decorrentes do holocausto nazista contra os judeus, assim como o massacre de populações indígenas nas Américas desde as grandes navegações europeias, que não deixam de ser exemplos históricos e marcantes de intolerância quanto à etnia, religião e/ou procedência internacional que afetam a autodeterminação e a própria existência de povos.
Apesar da alteração promovida em 1997 abarcar esses novos bens jurídicos, nem todos estavam protegidos. Como cediço, as mulheres são os principais alvos de preconceitos e discriminação na sociedade mas nenhum linha legislativa poderia ser utilizada para protege-las contra discriminação e violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, decorrentes de misoginia. Estatísticas de violência contra mulheres não são capazes de descrever todo o horror sofrido em decorrência de um simples diferença cromossômica.
Ainda que integre, no mínimo, metade da população nacional, no Brasil as mulheres somente tiveram proteção específica contra crimes decorrentes de sua condição com a Lei nº 11.340, de 2006, conhecida Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (Cedaw), da Organização das Nações Unidas (ONU), da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Convenção de Belém do Pará, da Organização dos Estados Americanos (OEA), ratificada pelo Brasil em 1994.
Por fim, em 2019, o Supremo Tribunal Federal determinou que crimes de homofobia, transfobia, ou seja, as condutas que resultantes de discriminação ou preconceito contra a população com orientação sexual e identidade de gênero distinta do padrão homem/mulher, sejam enquadrados lei de discriminação racial.
Nada obstante a ausência de expressa previsão legal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção (MI) 4733, relatado pelo ministro Edson Fachin, a Suprema Corte brasileira reconheceu que havia uma mora legislativa na proteção dessa importante parcela da população, de modo que a Lei nº 7716/89, deve ser aplicada a tais casos até que haja legislação específica.
Destaque-se que o art. 20-C da Lei de Discriminação Racial, incluído pela Lei nº 14.532, de 2023, determina que, no exercício hermenêutico de compreensão da realidade, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.
Com o advento das novas tecnologias, todas essas formas de discriminação que, por vezes aparentam ser algo inato e em outras elaborado construto cultural do ser humano, adaptou-se a essa realidade ubíqua, persistente e permanente do virtual. Infelizmente, a internet tornou mais facilitada e massiva a propagação de todas as formas de preconceito, sob o aparente escudo do anonimato e da privacidade criptográfica.
As redes sociais, que prometiam conectar o mundo, tornaram-se, paradoxalmente, um campo fértil para a disseminação do ódio. E, mais recentemente, a inteligência artificial tem sido usada, por vezes, para amplificar discursos discriminatórios., em especial por meio de disseminação massiva de desinformação, notabilizadas pelo ex-presidente dos EUA, Donald Trump, pela denominação de fake news.
Entretanto, nem todo o arsenal e esforço jurídico e legislativo, seja em ambiente doméstico ou por meio de Tratados e Convenções Internacionais, parece suficiente para solucionar esse problema, que é demasiado complexo para se extinguir de cima pra baixo. É essencial que as tecnologias de informação e comunicação sejam cada vez mais utilizadas para apresentar as diferenças e multiculturalismo como conditio sine qua non da própria condição humana. Isso talvez permitirá reduzir outro condicionante que promove discriminação: desigualdades, sociais, regionais e internacionais, ao ponto de permitir o reconhecimento do outro no espelho, como um semelhante.
É imprescindível, nesse sentido, a promoção de educação para a cidadania digital, ensinando as pessoas a reconhecer e combater discursos de ódio e as violências e discriminações que com eles estão abraçadas. As plataformas de mídia social devem assumir a responsabilidade de moderar o conteúdo e investir em tecnologias que identifiquem e bloqueiem mensagens discriminatórias, além de se aproximarem das autoridades para comunicações de casos criminais detectados com a maior brevidade.
Talvez assim, nós possamos imaginar, com John Lennon, e ter o sonho de Martin Luther King, onde as sociedades como um todo estarão unidas em verdadeira aldeia global para a promoção da vida e da liberdade e na defesa da tolerância e da diversidade, rejeitando qualquer forma de discriminação.
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